A narrativa perturbadora de Victor Eustáquio

Victor Eustáquio

A palavra traz consigo a magia da aproximação. Milhares de distância separam Brasil de Portugal, mas a literatura do escritor português Victor Eustáquio tem agradado aos leitores brasileiros. Um feito. Apesar do seu romance de estreia O Carrossel de Lúcifer (2008) não ter sido lançado no Brasil, mesmo assim é lido pelos quatro cantos do país; livro onde se revela um escritor noir de extrema competência.

Interessante ir descobrindo a cada página virada da obra do autor, composta também de  contos, um pouco mais do seu mundo interior. Pergunto se seus personagens têm algo dele. “Inevitavelmente. Apesar da linha de ficção e da linha da realidade nunca se tocarem, andam sempre muito próximas. Não acredito em histórias contadas por quem não as viveu. Um romance honesto interpreta a realidade, reinventando-a”, diz ele, que começou a ser  envolver com as letras ainda na infância.

Victor é um escritor denso, de fina ironia, sem perder de vista o humor, e que reúne em sua narrativa figuras solitárias, expondo alto grau de sentimentos primitivos e voltagem erótica. O sexo aparece como crítica a uma sociedade que oprime, isola e maltrata seus indivíduos. Talvez por sua formação filosófica consegue extrair dos seus personagens o que eles têm de mais secreto, obscuro. Seu texto por vezes brutal, perturbador às mentes mais delicadas, vai  impondo ao leitor pensar na sua existência.

Residente  na cidade de Torres Vedras, no distrito de Lisboa, o escritor está em vias de lançar  o seu segundo romance. Seria Victor Eustáquio o novo na literatura?  Conheça um pouco mais de suas idéias.

Qual o significado da literatura para você?
Como leitor, a possibilidade de conhecer o que os outros têm para dizer. Como escritor, a possibilidade de dizer aquilo que quero e preciso de dizer. É tão simples quanto isto. É claro que não deixa de ser um jogo de afetos, mas a literatura tem essa vantagem: a liberdade de escolha. Entre o que agrada e desagrada, entre o que se aprova e aquilo de que se discorda. Estou a ser simplista deliberadamente. Podemos dizer imensas coisas sobre o significado e os sentidos e as paixões e o alcance ou as razões do pulsar artístico presentes na escrita, mas não passam de lugares comuns, pela simples razão de que são inerentes à própria literatura. Por isso, prefiro a versão simplificada.

Você tem dito que tudo já foi escrito, há saídas para inovar?
Tudo já foi escrito no sentido de que todas as dimensões da existência humana já foram objecto de reflexões de natureza literária. Ou seja, do ponto de vista temático. Agora é evidente que qualquer peça literária nova é sempre uma inovação, porque simplesmente é nova. Desde que não se trate de um plágio descarado, como é evidente. A questão é que, sendo nova, não quer dizer que traga algo de novo, que acrescente algo de particularmente brilhante ao que já foi escrito em contextos diferentes. Aliás, diria mesmo que, na maioria dos casos, apenas replica, e mal, o que foi construído ao longo de séculos. O que porventura faz é relançar as mesmas preocupações em novos contextos. Poderemos aceitar isso como uma inovação? Talvez, se tivermos presentes alguns critérios. Não basta mudar as regras, como escrever sem pontuação, situar as narrativas em registos despudorados ou até mesmo recorrer às novas tecnologias, com aplicações que desenvolvem automaticamente vários caminhos para um determinado enredo. Estou em crer que a questão deve ser colocada de outro modo. Não me parece que seja um problema de forma, mas de conteúdo, aliás da pertinência do conteúdo. A literatura deve aspirar à possibilidade de manifestar a evolução das sociedades, pelo que a interpretação das novas escalas de valores talvez seja a dimensão a perseguir. Não será tanto um problema de querer criar algo de novo, procurar inovar, mas tão somente de reavaliar, de ser capaz dar voz e interpretar os tempos modernos.

Já disse que escrever está na moda. A erudição é necessária ao escritor?
Depende do que se entende ou se quer defender como erudição. Rejeito a presunção da alta cultura que reclama o saber, e a legitimidade de produzir ou reproduzir o conhecimento, como um bem exclusivo de determinadas elites. Contudo, também não me parece que seja intelectualmente coerente que qualquer indivíduo desate a escrever apenas porque está na moda. Quer dizer, pode fazê-lo, mas dificilmente é de se esperar bons resultados. Regra geral, é apenas mais um contributo para uma poluição que se achou por bem democratizar. Basta entrar numa livraria qualquer para perceber isto. Sejamos claros. E não vou dizer nada de novo, embora nunca seja demais repeti-lo: não é possível ser-se um bom escritor sem se ter sido antes um bom leitor. Até pode haver vocação, mas são necessárias ferramentas. Não técnicas, que essas até são competências que podem ser adquiridas num curso qualquer de escrita criativa – coisa que, aliás, até não consigo valorizar – mas ferramentas que nos permitam entender que a literatura é um compromisso com a verdade, uma verdade individual que aspira à universalidade. O pensamento literário não é conjuntural, mas estrutural. Desenvolve-se com muita leitura e paixão pela literatura. O próprio qualificativo de bom, ou a distinção entre o que podemos considerar bom ou mau, releva deste princípio: uma boa peça literária não é aquela que porventura é medida pelo que os críticos dizem ou pela popularidade ou número de cópias vendidas. O bom é indissociável da urgência de registar a verdade individual, de capacidade de interpretar a escala de valores em que nos posicionamos, da honestidade. Não é uma questão de se gostar ou de não se gostar, que essa é outra história com muitas armadilhas epistemológicas; é uma questão de saber estruturar a verdade que preconizamos como válida. Esta é a missão de um literato. Logo, pressupõe erudição, mas desde que colocada nestes termos e que obviamente constitui uma condição para alguém ter a ousadia de se afirmar como escritor.

A qualidade da literatura mundial decaiu?

Objetivamente não sei, porque nunca conseguirei ler o suficiente para poder ter uma amostra que me permita inferir da totalidade do que se escreve. Mesmo que me sinta tentado a delimitar a amplitude da qualidade da literatura. O que sinto é que há muita poluição. Escreve-se muito e acerta-se pouco. Aparentemente isto contraria o que disse há pouco, mas tenho dificuldade em acreditar que a democratização da produção literária, no sentido de que cada vez é mais editável tudo o que se escreve, corresponda a melhor literatura. Provavelmente isto responde à pergunta.

Qual o papel da filosofia dentro do seu ofício como autor?

É um processo inconsciente. A procura de uma ordem racional está presente mas não sei exacamente como se processa ou onde se situa. Às vezes, questiono-me ou questionam-me porque escrevi esta ou aquela frase. O que quero dizer com aquilo? Julgo que sei, mas depois sou incapaz de verbalizá-lo ou torna-lo inteligível. Está lá porque algo me disse que deveria ali estar. Algo me levou a escrever aquilo. Será possível racionalizar o que supostamente decorre de uma motivação catártica? Não quer dizer que eu não seja extremamente crítico e exigente em relação ao escrevo. Aliás, possivelmente peco pelo perfeccionismo ou por aspirar a essa condição. Por isso, é tão doloroso escrever. Pelo menos para mim. Quer dizer, reescrever, corrigir, ordenar. Fazer com que o resultado final faça sentido, que seja coerente, verosimilhante, que satisfaça de forma lógica e com uma densidade que possa considerar adequada a necessidade que precisava de suprir.

O conceituado escritor brasileiro, Autran Dourado, falecido recentemente, disse certa vez que vender livros é um acidente na vida do escritor. Você concorda?

Parcialmente. Entendo a escrita como uma forma de suprir necessidades que podem ser emocionais, espirituais, metafísicas, estéticas, criativas. Mas não sejamos hipócritas. Um escritor escreve para ser lido. De resto, um livro sem leitores não passa de um objecto. E não dá de comer a ninguém. Além de que não acredito que haja algum autor que não queira ver o seu trabalho reconhecido. É importante vender livros, embora não deva ser esse o principal objectivo de quem escreve. Para isso, há as editoras e as suas máquinas de marketing. Agora, é bom também não esquecer que há o livro obra, uma manifestação artística, e o livro produto, um bem fungível comercial, que se gasta com o tempo. Se estou convicto que um escritor escreve para ser lido, logo sou obrigado a defender que tem de ser capaz de gerar atração naquilo que produz. Não é que isso deva condicionar a natureza do que escreve, mas obriga a ter em mente esta regra de ouro, o que quer dizer que é evidente a necessidade de um compromisso e de uma clarividência sem grandes afetos. O fracasso é inimigo do bom. E não é fácil saber gerir a vontade e a qualidade do que se escreve.

Existe algo que você pode pontuar dentro do seu processo de criação?

Inicialmente não. Andei cerca de dois meses de volta da história, mas não estava a agradar-me e acabei por pô-la de lado. Um ano depois, tentei desenvolver uma outra ideia, mas de repente apercebi-me de que estava a trabalhar precisamente na mesma história com uma abordagem diferente. E aí deixei de ter dúvidas: era realmente aquilo que queria contar. O que me obrigou finalmente a fazer pesquisa. Aliás, bastante. Psicopatologia, farmacologia e serial killers não eram propriamente áreas da minha especialidade. Não é que fosse esse o fio condutor ou a dimensão central que me interessava explorar. Mas para explicar as relações entre as personagens e imprimir densidade e ruídos de fundo permanentes, não podia passar ao lado. Além de que a credibilidade ou a verosimilhança dos acontecimentos a narrar ficariam comprometidos. Resultado: à medida que fui mergulhando no tema, apaixonei-me cada vez mais e acabei por encontrar nele muito material que me abriu portas para reforçar a intertextualidade e o registo tenso da narrativa.

Qual a  leitura que faz sobre o seu livro O Carrossel de Lúcifer?

É uma questão que reservo para os leitores. Aliás, dos ecos que vou recebendo, esse é um dos aspectos que me tem deixado particularmente satisfeito. As leituras têm sido tão diversas que, às vezes, até me questiono: estão a falar do romance que eu escrevi? Sinceramente não fazia a mínima ideia de que houvesse nele tantas possibilidades de ser lido.

Como foi a escolha do enredo?

Não foi escolhido. Foi nascendo. Basta dizer que a história acaba onde planeei começar. Pode parecer estranho, mas escrevi o livro que precede o que estava a pensar escrever. A busca de credibilidade obrigou-me a recuar no tempo e, quando dei por mim, verifiquei que a história que queria contar era afinal bem maior do que aquela que tinha em mente. Mas trezentas páginas depois, era melhor ficar por ali.

É sofrido escrever ou é um processo prazeroso?

Ambas as coisas. Doloroso, porque não consigo fugir de uma relação constante de amor e ódio com o que escrevo. Prazeroso, porque sinto que nunca chego ao fim. Pode parecer uma forma de masoquismo, mas é o doce veneno de quem escreve para suprir necessidades. Só é possível ser feliz se nunca conquistarmos verdadeiramente a felicidade. É um lugar-comum, mas soa bem.

Tem muitos fãs no Brasil. Por que «O Carrossel de Lúcifer» não foi lançado aqui?

Também me questiono sobre isso. É certo que tem estado à venda através da maior rede de distribuição livreira no Brasil, mas a título de produto importado, com um preço proibitivo que não ajuda nada.
Por que depois de quatro anos optou por lançá-lo em e-book, gratuitamente? Atendeu às suas expectativas?
Fi-lo precisamente para o Brasil, donde recebi inúmeras mensagens de pessoas à procura do livro. Quatro anos após a edição em Portugal, e à falta de espaço nas livrarias brasileiras, por que não no ciberespaço, que está sempre vago? Como qualquer autor, gosto de ser lido. É para isso que escrevo.

Em Portugal como foram as vendas do seu livro? Também foi lançado fora do país?
Moderamente modestas, considerando o número de exemplares da primeira edição, que foi acima do que é habitual para uma primeira obra. Mas Portugal também não é propriamente um grande mercado para romances destes. E com a avalanche de novos títulos que são publicados todos os meses, ou se entra no tops na primeira semana, ou não há espaço nas livrarias. Literalmente. Aliás, tal como sucedeu com os leitores brasileiros, também recebi muitas mensagens de pessoas em Portugal à procura do livro. Só me restou reencaminhá-los para a compra online com os constrangimentos que daí decorrem.

Vejo que você se utiliza da internet para mostrar o seu trabalho. Até que ponto a web ajuda a difundí-lo?

Nunca medi seriamente o impacto que eventualmente possa estar a ter. Diria que tem tido um efeito positivo, que aliás se refletiu nas vendas. Apesar de estar arredado das livrarias, o romance continua a vender. Há novos leitores, sinais de curiosidade. Talvez o livro tenha ganho alguma notoriedade adicional. Não sei ao certo. De qualquer modo, tenho estado mais concentrado em partilhar algum material novo. E essa tem sido uma experiência muito interessante.

Acha que a maioria das pessoas adicionadas à sua página no FB o lê de fato?

A maioria de certeza que não lê, como é evidente. Mas tenho leitores fiéis, bastante críticos e entusiastas. E isso é o quanto me basta no FB. Porque há um feedback direto, uma interação forte, personalizada, o que é bastante enriquecedor para o meu trabalho.

Tem como medir esse retorno? Se considera um fenômeno da internet?

É possível medir, mas como disse nunca o fiz. De resto, os indicadores quantitativos acabam por ser pouco relevantes porque nada dizem quanto aos sentidos com que são produzidos – é como os likes, tendencialmente ditados pela regra do impulso e do imediatismo – ao contrário do que sucede com os indicadores qualitativos, que são bem mais reveladores. Os comentários ou mesmo os silêncios são sinais preciosos. Quanto a ser um fenômeno da Internet, só pode ser uma pequena maldade da Cecília…

Como é a sua relação com os seus leitores brasileiros?

Muito intensa. São os meus maiores críticos. E os que me acolhem com mais entusiasmo e afeto. Mesmo quando discordam ou desaprovam o que escrevo, fazem-no, regra geral, com muita acutilância e sempre de forma afável e muito construtiva. Não se pode pedir melhores leitores.

Pretende vir ao Brasil? Quem sabe até escrever um livro aqui?

Já estive no Brasil várias vezes e com estadas relativamente longas por questões profissionais, sobretudo em São Paulo e no Rio de Janeiro. E decerto que seria uma experiência muito agradável poder escrever um livro no Brasil, especialmente no interior onde vivi momentos inesquecíveis.

Quando vai lançar outro livro?

Demorou, mas já está escrito e entregue na minha editora em Portugal, de quem aguardo um feedback. É coisa recente, sobre a qual ainda pouco posso dizer. Em todo o caso, pelo menos posso adiantar que o Brasil ocupa um espaço considerável neste romance.

E o tema?

Vou deixar em aberto, embora possa dizer igualmente que continua a haver um denominador comum. Aliás, receio bem que este seja bem mais feroz que o primeiro.
Além de «O Carrossel de Lúcifer», tem contos editados?
Alguns, apesar do conto ser um gênero que exploro raramente. Um deles, a título de curiosidade, foi publicado numa revista literária brasileira.

O que está lendo no momento?

De momento, como sempre, muitas coisas ao mesmo tempo. Descoberta relativamente recente que ocupou grande parte das minhas leituras deste ano: a obra de Roberto Bolaño. Completamente rendido e apaixonado. Pelo meio, vários romances que foram sendo publicados ao longo do ano, embora lidos com muito desapontamento, Incluindo um Vargas Llosa ou um V. S. Naipaul, que cito apenas por serem ambos Nobel e desastrosos. De resto, muitos scholars e outro material acadêmico por causa da minha tese de doutoramento.

Quando despertou para escrita?

Sim, comecei a rabiscar as minhas primeiras histórias creio que de forma mais ou menos consciente por volta dos dez, onze anos. Dez anos depois, tinha uma pilha de textos, de contos e dois romances. Sempre prosa, ficção. Ideal para manter a saúde mental. Não é que valham alguma coisa como peças literárias. Mas soube bem fazê-lo. E foi importante para exercitar a pena.

O sopro feminino de Andréa del Fuego na literatura brasileira

A jovem escritora paulista Andréa del Fuego está em um momento sublime da sua vida pessoal e profissional. Às vésperas  de dar à luz  seu primeiro filho,  ganhou recentemente o importante prêmio José Saramago de Literatura, em Portugal, com o seu primeiro romance Os Malaquias. O livro parte de um fato real ocorrido com seus bisavós em Minas Gerais.Eles foram fulminados por um raio, tragédia que acabou por separar os três filhos do casal.

Andréa del Fuego faz parte da chamada nova literatura brasileira,formada pela geração de escritores dos anos 1990, que começou a se mostrar publicando na internet, sem a intervenção das grandes editoras.Tornando assim a produção literária mais acessível ao público leitor.Seu trabalho diferenciado logo se destacou em meio à enxurrada de novos autores que se lançam em blogs e redes sociais.À propósito, quem foi que disse que o novo na literatura já tinha se esgotado? Andréa está aí para provar exatamente o contrário.
Autora da trilogia de contos Minto enquanto posso (2004), Nego tudo (2005) e Engano seu (2007), tem publicado dez livros.  Escritora de narrativa inspirada e estilo singular, a prolixidade passa longe de seus textos. Sucinta,  consegue se expressar com profundidade, construindo seus  textos com magnitude e lirismo.
Nascida Andréa Fátima dos  Santos, adotou del Fuego por ocasião do programa de rádio em que respondia dúvidas sexuais de ouvintes.  O editor pediu um pseudônimo de efeito, que foi sugerido pela sua sogra. “Mantive Andréa del Fuego pela sonoridade, fogo é um elemento inquietante”, explica.
No início da carreira literária uma das características  da escritora era os textos eróticos, mas isso definitivamente é coisa do passado. “O  erotismo é uma força que eu supunha ser a maior, hoje não a vejo assim, ela faz rodar o chão, mas quem faz abrir o chão é a morte. Hoje, grávida, vejo que o erotismo de certa forma retoma minha imaginação, mas não como antes. Prestes a parir, tenho imaginado o parto como um cio, o maior deles”, diz a escritoria, que aguarda pela chegada de Francisco, prevista para menos de dois meses, fruto de uma relação de vinte anos com o namorado, “um casamento de alma”.
Natural de São Paulo,  fez colégio técnico de publicidade em São Bernardo do Campo, no ABC paulista, onde foi criada. Há três anos começou uma graduação de Filosofia, na PUC de São Paulo,  e agora está na USP. “Devo levar uns cinco para me formar, o que para a filosofia é nada”.
Sobre sua sua formação literária aliada à filosofia diz: “Fui  encontrando mestres aqui e acolá que me levaram às boas leituras, por exemplo. Mas a filosofia tem um efeito imenso, a própria forma em que se lê os textos, procurando a engrenagem do pensameto do autor, já contamina a forma como leio literatura”.
Como você define essa nova nova literatura da qual faz parte. Em que difere da literatura tradicional? Não tenho conhecimento necessário da literatura tradicional, nem da nova, para traçar uma diferença entre elas. Mas tomando um exemplo, se pegarmos um nome de peso como Machado de Assis, que utiliza parágrafos curtos e texto conciso, poderíamos colocá-lo na atualidade. A verdade, esses recursos não são novos hoje, nem foi para Machado, esse mesmo recurso pode ser lido num autor anterior e que era sua leitura, o Xavier de Maistre. A preocupação com o novo é que é tradicional, e velha. Hoje, as vozes estão sendo publicadas mais facilmente. As obras, por exemplo, podem não passar pelos critérios de um editor, pode-se bancar o próprio livro, coisa que tornou-se economicamente mais viável. Ninguém tem desculpa para não sair à luz. Com esse fluxo, sobrou para o leitor a crítica e a edição, o leitor agora acumula a função seletiva como nunca, diante de tantas ofertas. Também por conta dessa facilidade, há uma certa pressa em publicar, há uma escrita voraz, um mesmo autor apresenta tons diferentes de seu trabalho, o mesmo autor pode não ter uma voz única. Somando tudo isso, há uma pluralidade na safra dos últimos vinte anos difícil de acompanhar e definir.
Você saiu do texto curto dos contos para um romance. Como ocorreu essa transição. Foi difícil achar o ‘tom’ e a linguagem de Os Malaquias?  A transição se deu com muito trabalho, mas não porque achei que fosse a hora de avançar para o romance, mas porque a história que me ocorreu escrever não caberia num conto. Sabia que precisava de mais estrada mesmo, o tema em si pediu espaço. Foi difícil encontrar o tom de Os Malaquias, anos de releitura até que se apurasse a calda, mas nada tão consciente. No momento da escrita foi uma desistência triste por não conseguir acertar. Hoje é que percebo que ter deixado o texto descansar na gaveta foi importante.
Em que momento da sua vida começou a se interessar por literatura? Como leitora foi na adolescência, ao tomar contato com Machado de Assis na escola. Foi uma delícia, de repente fui apresentada aos textos que não queriam explicar nada, sem fórmulas, sem conta para fazer, era uma mentira aceita e a professora dizia que era importante. Na escrita surgiu logo depois, com diários de menina querendo ser melancólica, depois saí do diário e cultivava histórias sem nenhuma pretensão, nem mesmo de que alguém lesse. Muito mais tarde fui tirando os textos da gaveta e os expondo.
Lia na infância? Na infância não li, não havia livros em casa e mesmo na escola não me lembro de qualquer livro em minha mão. Na adolescência li os livros que os professores adotavam, só mais tarde fui pegando autonomia.
E hoje, quem você  lê? Nesse exato momento estou lendo filosofia, influenciada pela faculdade que estou cursando. Estão em minha cabeceira três livros de Gaston Bachelard: O ar e os sonhos, A poética do devaneio e A água e os sonhos. Extraordinários! Estão me nutrindo para revisar um romance breve que escrevi tendo como tema o sonho.
Quais são as suas influências literárias? Machado de Assis, desde o início. Durante a escrita do romance, caí nas águas de William Faulkner. Sinto também que nos últimos tempos fui influenciada pelo autor chileno Roberto Bolaño, isso depois de ter escrito Os Malaquias. O chileno tem uma soltura irônica, um atrevimento que gosto muito. Escrevi um conto tendo ele como personagem para a antologia “Escritores escritos”, onde cada autor convidado escreveu uma narrativa incluindo como um dos personagens um escritor morto. O título do conto é Camping Calamares, onde me permiti colocar Bolaño em situações parecidas com as quais ele mesmo colocaria um personagem. Um conto delicioso de escrever.
Sendo da geração digital, como vê o futuro das editoras, em razão do impulso da internet, que facilita a aproximação do escritor com o leitor, possibilitando novas formas de se colocar um livro no  mercado consumidor? As editoras sempre existirão pela seleção que ela faz entre muitos livros, o que será, a cada dia, mais importante diante da quantidade de livros publicados em papel ou digitais. O livro não desaparecerá, creio, é um suporte perfeito para a leitura, confortável, pode-se mensurar sua biblioteca visualmente, acredito que a paisagem dos livros sempre será desejada. A internet aproximou todos da leitura e da escrita. Posteriormente, aquele que acaba de entrar na rede verá que sua comunicação será mais eficaz e forte quanto melhor ele puder escrever, e terá como modelo outros registros, de outras pessoas, para copiar. Isso não é literatura, mas é o caminho de escrita e leitura de caracteres, não mais só de imagens. Na verdade, nem todos serão grandes leitores, assim como nem todos são grandes degustadores de música. A exigência não só da leitura, mas da “grande” leitura acaba por inibir a fruição, acho.
Os Malaquias  já foi lançando em Portugal? O livro sairá no começo de 2012 em Portugal.
Acredita que o prêmio José Saramago de Literatura  irá  abrir espaço para sua carreira internacional?  O prêmio abre mesmo as portas para o mercado internacional, o livro também sairá em Buenos Aires, e em 2013 na Alemanha. Mal posso esperar para ter em mãos esses exemplares vertidos para outra música.
Em que momento você concluiu que já estava preparada para escrever um livro? Nada pensando, nem calculado. Foi uma vontade, um desejo, mais do que sentir-se preparada. O primeiro livro saiu com aquela emoção de uma certidão de nascimento, quando na verdade esse nascimento pode ser do autor e não da literatura propriamente dita desse autor. Acho que estreei com o romance Os Malaquias, um livro que contou com o tempo como aliado.
Fale um pouco sobre Os Malaquias. Como foi o processo de criação? O processo seguiu passos pessoais. Resolvi escrever depois da morte de minha avó, a primeira reescrita séria se deu com a morte de meu tio-avô que é personagem do livro, e curioso que eu tenha recebido o Prêmio José Saramago dez dias após o falecimento de meu avô Nico, também retratado no livro. O processo levou 7 anos e joguei muitos capítulos no lixo, parágrafos que achava essenciais no início e logo depois se mostraram atenuantes de cenas e ações.
Em Os  Malaquias você tem um econtro com seus familiares, um resgate do passado repleto de vínculos afetivos. Sendo esta também a sua história, mudou alguma coisa em você depois que terminou o livro? Emocionalmente como foi escrevê-lo? Ele surgiu de uma iniciação à morte e atravessou a perda de uma pessoa querida, o tio-avô Antônio. De modo que o realismo mágico presente não foi uma escolha estética, mas uma escolha psicológica, de fuga, de distanciamento do retrato de família justamente para não tocar na coisa em si, mas numa imagem que pudesse ser uma e várias, dando certo alívio para a minha entrega pessoal ao livro. Emocionalmente foi uma conciliação com miasmas familiares, o que pode ser bom ou não. Foi uma travessia.
Qual o perfil do seu leitor? Contando com os livros juvenis, tenhos leitores de 9 a 80 anos. Os mais velhos são, na maioria das vezes, também escritores ou poetas, além daqueles que souberam dos livros por boca-a-boca.
Seu conto Avon já foi adaptado para o teatro. Gostou do resultado? Foi adaptado no projeto Prosa Afiada, da atriz Karina Giannecchini, que percorreu algumas unidades do Sesc. Eu adorei! Essa foi a única experiência próxima ao teatro que tive. Gostaria de ver a criação de um diretor e de atores sobre o que escrevo, não a transferência do que está escrito, mas a junção de criação, ver o texto ser estilhaçado.
E  no cinema, vem novidades pela frente? Houve interesse, há alguns anos, pelo juvenil “Sociedade da Caveira de Cristal”, trata-se de uma aventura bem cinematográfica mesmo. “Os Malaquias” certamente renderia boas paisagens, mas não há nada no horizonte, só o meu desejo.
Já está escrevendo o próximo livro? Estou revisando um livro que ganhou o Programa Petrobrás Cultural, uma bolsa de escrita concedida pela Petrobrás. O tema é o sonho, um desafio imenso, já que esse assunto é um tema praticamente esgotado. Um livro que ainda precisará de um bom tempo para amadurecer.
Como encara a crítica. Ela é necessária ao escritor? A crítica é sim necessária, mas ela não precisa vir necessariamente do crítico profissional. Um olhar atencioso sobre algum aspecto pode revelar cenas que estão ocultas e podem ser desbravadas, ou colocar em evidência as sobras imensas que deixamos passar.
O espaço da mulher tem crescido na  literatura? O espaço tem aumentado, e trata-se de um espaço ocupado e não dado. Basta olhar nas livrarias, as mulheres estão publicando cada vez mais. Não precisamos justificar nada, nem pedir lugar, é só entrar.

A literatura provocadora de Marcelo Mirisola

Mordaz, ácido, irônico, escrachado, encrenqueiro, são alguns dos adjetivos atribuídos a Marcelo Mirisola. Goste dele ou não, esse romacista e contista paulistano de 45 anos  incomoda. Faz barulho com a sua arte literária, dentro de uma sociedade silenciosa, por vezes escondida atrás das aparências e do que se convencionou chamar de politicamente correto.

Marcelo ousa, fala com transparência. Seus livros  parecem ser sua própria extensão. Neles  desmascara  a hipocrisia humana com uma linguagem escatológica , envolta em humor ferino e fina ironia. Enxerga-se nas suas obras, mas ao mesmo tempo faz com que os leitores se vejam ali  também.

Expoente da literatura dos anos 90, já escreveu 12 livros  entre os quais Fátima fez os os pés para mostrar na choperia (1998), O herói devolvido (2000), Joana a contragosto (2005) e Memórias da sauna finlandesa (2009). E acaba de lançar  o romance biográfico Charque, onde narra fatos da sua vida com lirismo e escárnio.

Nos seus livros encontramos um pouco de Charles Bukowski, Plínio Marcos e Nelson Rodrigues. Grandes nomes das artes à  parte, a prosa marcante de Mirisola se sobrepõe  por força de um estilo próprio e sedutor. Polêmico, controverso, amado ou odiado, não importa. A literatura agradece.

Criado no bairro de Pinheiros, Marcelo Mirisola é solteiro. Formou-se em Direito, atividade que nunca exerceu. Mora no Centro de São Paulo, cidade para onde voltou depois de residir  no Rio de Janeiro e Florianópolis. Porém, questiona a própria escolha, em entrevista ao blog Scriptor. “Sabe de uma coisa? Cometi uma bobagem ao voltar pra São Paulo. Depois que o Bactéria saiu da praça Roosevelt, aquilo ali virou um IML. Quem salva meus dias são meus poucos amigos de fé que circulam pela área, e a Paulinha Denise … mas esse é outro papo”…

Mas quem será Paulinha Denise? Se a citou é porque ela deve ter lá seus encantos.

Marcelo, você é um escritor que representa o novo na literatura brasileira, dentro de uma literatura em que me parece quase tudo já foi escrito e reescrito de formas diferentes. Ainda tem muito tema a ser explorado no universo literário ou a forma diferenciada como cada autor enxerga a vida é que pode trazer elementos inéditos para novas histórias?  No final das contas, o que vale é o tempero que cada um põe no seu prato. A resposta está no final de sua pergunta, por aí.

Você é um escritor ácido, desprovido de hipocrisia, que mexe na feriada.  Mas a sutileza do humor está sempre presente na sua prosa.O humor é inerente à literatura?  Não é que eu seja  desprovido de hipocrisia. A hipocrisia, na literatura, pode ser ferramenta de trabalho.  Acidez, as feridas e o humor são consequências desse desapego ao tratar, por exemplo, da hipocrisia … como se fosse virtude e vice-versa.

No seu novo livro Charque mistura ficção e realidade. Mas a realidade parece sobressair à ficção. O que tem de real e fictício no seu livro? Tudo verdade, inclusive as mentiras.

Qual a sua intenção ao escrever na primeira pessoa. Qualquer leitor pode se vê nas páginas como sendo o centro daquela história? Escrevo na primeira simplesmente porque não sei escrever na terceira nem na segunda do plural. Mais fácil, só isso.

Você disse recentemente: “Espero que de agora em diante, os “críticos” e a imprensa em geral deixem de ser infantis e façam seu trabalho,assim como faço o meu. Me odiar não vai adiantar nada”. Por que você acha que eles odeiam o seu trabalho? Eu não “acho”. Basta ver as declarações dos meus pares (ou o silêncio vergonhoso)  e as matérias assinadas por “jornalistas” do ramo. Você não acompanhou a baixaria da semana retrasada ? Fui odiado e humilhado publicamente na Folha. A coisa foi tão feia e o ódio tão escancarado, que a editora da Ilustrada, Fernanda Mena, ligou para minha casa e me ofereceu direito de resposta, sem eu pedir. A ombudsman do jornal também ficou horrorizada, disse que se tratava de um desastre. E o pior de tudo: o ódio contra minha pessoa é extensivo ao meu trabalho. Complicado, né?

Ainda dentro desta questão, qual o papel da crítica? O papel da crítica é irrelevante porque a literatura é irrelevante no Brasil. Isso nada tem a ver com qualidade, entende?  Faz duas semanas que lancei o Charque em São Paulo, e o destaque nos sites e nos veículos de comunicação naquele dia foi um idiota que implantou 353 piercings no rosto. Antes, durante e depois, o Neymar… você acha que alguém se importa com literatura no Brasil?  Se fosse o caso, o Jô Soares não teria vendido 30 mil livros numa semana… Aí você me pergunta qual o papel da crítica literária. No mundo que vivemos, nenhum, nada, não serve nem pra papel higiênico.

Quem você lê? Meus amigos. E autores mortos.

Fale um pouco sobre a sua formação. Escrevi 12 livros. É tudo e é muito.

 Ao f azer  uma análise de toda a sua obra, mudaria alguma coisa nela, refaria algum parágrafo, a escreveria de outra forma? Se eu não fosse tão preguiçoso (ou se fosse muito bem remunerado) reescreveria Animais em Extinção, que foi um equívoco.

Qual é o seu sentimento quando termina um livro? Impotência.

Ao terminar um livro é fácil se desvencilhar daquela história e personagens, que de alguma forma você conviveu por um bom tempo? Isso é balela. O escritor que se deixa embalar e/ou envolver por personagens é um tonto. Talvez esse blablablá faça algum sentido no programa da Catia Fonseca… que, aqui entre nós, é uma gata. Adoraria ir ao programa dela.

A História do Brasil contada por Laurentino Gomes

Carol Reis

Quando  Laurentino Gomes resolveu mergulhar fundo no Brasil Império sabia que teria anos de pesquisa sobre o assunto pela frente. E assim sucedeu um trabalho incessante, detalhado, resultando em uma fascinante volta  à raiz brasileira, que o transformou em fenômeno de vendagem.

Tudo teve início em 2007 ao lançar o seu primeiro livro, que veria a ser um best-seller:  1808- como uma rainha louca, um príncipe de uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a história de Portugal e Brasil.  Com uma narrativa fluída e  sem subterfúgios Laurentino conseguiu agradar tanto colonizador quanto colonizado. O tema, centrado na fuga da família real portuguesa ao Brasil, ultrapassou a marca de 800 mil livros vendidos. Sucesso que chegou a Portugal com a venda de 50 mil exemplares, número considerado surpreendente para um país de apenas 10 milhões de habitantes.

Tamanho sucesso resultou em prêmios almejados  no universo literário. Recebeu em 2008 o Jabuti de Literatura na categoria livro-reportagem e livro não-ficção, e ganhou o de Melhor Ensaio da Academia Brasileira de Letras.

Com ‘1808’ Laurentino deu início a uma trilogia que continuou, no ano passado, com o lançamento de 1822 –como um homem  sábio, uma princesa triste e um escocês louco por dinheiro ajudaram D. Pedro a criar o Brasil, um país que tinha tudo para dar errado. O ciclo será fechado baseado no enredo sobre o Segundo Reinado e a Proclamação da República, a ser editado em 2013.

Antes de ingressar na literatura, Laurentino Gomes teve uma carreira bem sucedida no jornalismo.  Passou por redações da grande imprensa, como da revista Veja e do Jornal O Estado de São Paulo.

Mas o seu interesse pelas letras começou bem antes, em Maringá (PR), ainda na infância, por influência do seu pai, um cafeicultor humilde; leitor voraz, que gostava de obras de história e filosofia,  emprestadas do pároco local. “Sou um típico exemplo das transformações que a educação e a leitura podem proporcionar à vida das pessoas”, declara Laurentino em entrevista ao blog Scriptor.

Como resultado do ambiente em que vivia, dissecava tudo que chegava às suas mãos: de gibi a bula de remédio, de revistas de consultório a jornais, além de muitos livros. Nesse período  já se interessava também em entender a história, sua matéria preferida nos tempos de escola.

Hoje, esse escritor de 55 anos de idade, que já vendeu mais de 1, 2 milhão de livros entre Brasil e Portugal, confessa  gostar mais de ler do que escrever. Por isso acha uma “aventura fascinante” a pesquisa que faz antes de iniciar suas obras, levando-o aos prazeres da leitura que tanto aprecia. A pesquisa gosta mesmo de fazer sozinho, sem equipe de apoio. “Só assim é possível identificar aquela pepita de ouro escondida dentro de uma página ou um parágrafo que, às vezes, muda radicalmente a visão de que se tem de um acontecimento ou personagem”.

Casado com a  jornalista Carmen Sodré Gomes e  pai de três filhos adultos e uma adolescente, mora afastado dos grandes centros urbanos. Reside na simpática cidade de Itu, no interior de São Paulo, em um condomínio dentro de uma antiga fazenda de café. Mas vive viajando pelo país,  proferindo palestras ou dando aula, para relatar a brasileiros a verdadeira história do Brasil.

Seus livros são uma grande reportagem? Toda a minha formação foi construída no Jornalismo. A rigor, nunca deixei de ser jornalista. Apenas mudei de formato. Antes escrevia para jornais e revistas. Agora faço livros reportagem. Na essência, continuo a fazer jornalismo. No fundo, história e jornalismo são disciplinas muito parecidas, quase gêmeas. Jornalistas testemunham e relatam a história a sangue quente, em tempo real, enquanto ela acontece. Historiadores fazem a mesma coisa, só que com um distanciamento maior no tempo e com mais método e disciplina na apuração. Jornalistas são, portanto, historiadores do presente, enquanto que os historiadores são os repórteres do passado.

Será que foi por este aspecto jornalístico que seus livros ‘caíram’ no gosto do leitor, além do  conteúdo interessante? Na pesquisa dos meus livros, eu uso a técnica da reportagem. Ou seja, procuro observar os acontecimentos e personagens sob a ótica do jornalismo. Mas o texto é sempre construído com base nas lições que a literatura ensina para capturar e encantar os leitores. Portanto, minha fórmula combina jornalismo e literatura. Um bom escritor precisa ter a habilidade de escolher as palavras para contar uma estória ou transmitir uma ideia. Procuro usar elementos pitorescos da história para atrair a atenção do leitor. Isso explica, por exemplo, os subtítulos dos dois livros. Esse recurso bem humorado é usado com o propósito de provocar o interesse do leitor, como se faz, por exemplo, num título de capa de revista ou numa manchete de jornal.

Texto objetivo, direto, com fluência, facilita o entendimento? Meu objetivo é sempre contar a história do Brasil em linguagem acessível para um leitor comum não habituado à historiografia acadêmica. Tento facilitar a vida dos leitores escrevendo em estilo jornalístico, simples e agradável. Ninguém precisa sofrer para estudar História. Portanto, minha contribuição ao estudo da História do Brasil é de linguagem. Importante, no entanto, é não deixar que o livro se limite à caricatura e ao pitoresco. O conteúdo tem de oferecer um mergulho mais profundo ao leitor, mas sem dificultar a linguagem. Essa é uma linha tênue e perigosa. Se o autor  ficar só na superfície e na banalidade, o livro não oferecerá contribuição alguma, será irrelevante. Se, ao contrário, der um mergulho muito profundo, não conseguirá prender a atender desse leitor menos especializado. Mas entendo também que esse é o desafio permanente do bom jornalista e do bom escritor.

O brasileiro se interessa e conhece a sua própria história? Acho que o brasileiro está, finalmente, começando a se interessar pela sua própria história. E isso é fundamental para a construção do Brasil do futuro. Uma sociedade que não estuda História não consegue entender a si própria porque desconhece as razões que a trouxeram até aqui. E, se não consegue entender a si mesma, provavelmente também não estará preparada para construir o futuro de forma organizada e estrutura. Se você não sabe de onde veio, como saberá para onde vai? Vejo com grande alegria a presença de tantos livros de história nas listas de best-sellers. É sinal que os brasileiros estão olhando o passado em busca de explicações para o país de hoje. E a História serve para isso mesmo. É quase impossível compreender o Brasil de hoje sem estudar a vinda da corte de D. João para o Rio de Janeiro e a influência decisiva que esse acontecimento teve na Independência em 1822. Eu diria que todas as nossas características nacionais, todos os nossos defeitos e virtudes, já estavam presentes lá.  

Como foi o seu processo de pesquisa para escrever ‘1808’ e ‘1822’. Foi a Portugal buscar mais informações? Procuro sempre observar os personagens e acontecimentos com os olhos de um leitor adolescente ou um adulto mais leigo, não habituado a ler sobre História do Brasil. Se esse leitor conseguir entender o que eu tento explicar, todos os demais também entenderão. Eu leio muito sobre o assunto, pesquiso documentos e visito os locais em que as coisas aconteceram dois séculos atrás. Visitei inúmeros lugares de Portugal e do Brasil relacionamento à fuga da corte de D. João para o Rio de Janeiro e a Independência. Apesar da distância no tempo, esses lugares ainda guardam hoje muita informação para quem tiver o olhar atento. Também procuro orientação adequada logo no início do projeto. No livro ‘1822’ tive o acompanhamento do diplomata, ensaísta e historiador Alberto da Costa e Silva, ex-presidente da Academia Brasileira de Letras. Sua orientação na pesquisa e na edição do livro foi absolutamente fundamental para a consistência do resultado final. 

Foi surpresa vender tantos livros? Nunca imaginei que livros de História do Brasil pudessem ter uma repercussão tão grande.  Ainda hoje me surpreendo com a reação dos leitores. Recebo dezenas de e-mails todos os dias, nos quais fazem elogios, sugerem temas para futuras obras e pedem que eu não pare de escrever. Um livro tem grande poder de transformação. E o primeiro alvo da mudança geralmente é o próprio autor. Minha vida mudou bastante desde que lancei o ‘1808’ na Bienal do Livro do Rio de Janeiro de 2007. Hoje passo boa parte do meu tempo lendo, pesquisando ou viajando pelo Brasil para dar aulas, fazer palestras e participar de sessões de autógrafos e bate papos com os leitores. E confesso que nunca estive tão feliz. O reconhecimento e o contato com os leitores funcionam como um elixir da juventude para mim. Sinto-me renovado e com muita energia para me dedicar aos futuros livros.

Surpreendente vender mais de 100 mil exemplares nos três primeiros dias de lançamento do seu segundo livro ‘1822’. Esperava tamanho sucesso? Confesso que, depois da grande vendagem de ‘1808’, eu tinha certo receio de não repetir o sucesso com o ‘1822’. Felizmente, isso não aconteceu. O segundo livro saiu com uma tiragem inicial de 100 mil exemplares, mas tudo isso já estava vendido antes mesmo de chegar das livrarias, resultado de um bem planejado e competente trabalho de pré-venda coordenado pela equipe da editora Nova Fronteira (do Grupo Ediouro). A repercussão foi tão grande que a editora decidiu imprimir mais 100 mil exemplares nos três dias seguintes. Ou seja, tivemos um total de 200 mil livros na praça logo na primeira semana do lançamento.

Surpreendente também isso acontecer em um país considerado alheio à leitura e com alto índice de analfabetismo funcional. Em sua opinião, por que se fala tanto que o brasileiro não lê, quando seus livros provam o contrário? O Brasil está mudando rapidamente, para melhor, em quase todas as áreas – e isso não é mérito individual de nenhum governo. É resultado do exercício continuado da democracia por quase três décadas, uma experiência inédita em nossa história. Estamos colhendo, finalmente, os frutos da participação de todos os brasileiros na construção da nossa própria história. Hoje temos, entre outras melhorias, mais renda, mais empregos, mais educação e oportunidades do que trinta anos atrás. Uma das consequências é o aumento no número de leitores e o crescimento do mercado editorial brasileiro. Há novos leitores entrando nesse mercado, o que impõe novas responsabilidades para nós, escritores, editores e distribuidores de livros. Temos de ser generosos com esse novo leitor, de modo a atraí-lo definitivamente para o fascinante mundo dos livros. Temos de oferecer preços acessíveis, ter boas estratégias de marketing, escrever de forma didática e promover eventos e programas que incentivem a leitura no Brasil. Portanto, há grandes oportunidades abertas em diversas áreas do conhecimento. Só precisamos saber aproveitá-las.

Qual o perfil do seu leitor? Tenho observado que o público é o mais amplo possível. Inclui governadores, prefeitos e presidentes de bancos, mas também empregadas domésticas, crianças e adolescentes. Por isso faço tanta questão de ir ao encontro do leitor. Desde o lançamento do primeiro livro, passei a percorrer o Brasil para dar aulas, palestras, participar de sessões de autógrafos e bate papo com os leitores. Já visitei mais de cem cidades, num total de quase 300 eventos. Sou contra escritores que fazem livros e se escondem dentro de casa, evitando qualquer contato com os leitores. Eu, ao contrário, dou entrevistas, tenho comunidades no Facebook e no Twitter e também um site na internet, pelo qual os leitores podem acompanhar a minha agenda, ler entrevistas e artigos publicados sobre mim e minha obra, discutir os posts que faço no meu blog e enviar emails para minha caixa postal. É como naquela música do Milton Nascimento: “Todo artista tem de ir aonde o povo está”. Eu corro atrás dos meus leitores.

Como é sua relação com seus leitores portugueses? A acolhida entre os leitores portugueses tem sido muito boa. Proporcionalmente, o ‘1808’ mais no mercado português do que no Brasil. Em setembro de 2010, ao lançar o ‘1822’ em Portugal, vivi um experiência nova e encantadora. Antes da sessão de autógrafos na cidade do Porto, promovida pela minha editora, dei aula sobre História do Brasil para um grupo de estudantes adolescentes de uma escola de ensino fundamental. Ali pude compreender que o desconhecimento a respeito da história brasileira é muito grande entre os portugueses. Eles mal sabiam do que significa a data 1822 para nós. Mas a recíproca também é verdadeira. Nós brasileiros conhecemos pouco sobre a história portuguesa e geralmente não temos noção do que aconteceu a D. Pedro I após a abdicação à coroa brasileira, em 1831, quando ele voltou a Portugal para enfrentar o irmão D. Miguel na maior e mais sangrenta guerra civil portuguesa. O sucesso dos livros indica que o interesse pela história desses países tem crescido muito nos dois lados do Atlântico. E isso é uma ótima notícia. Brasileiros e portuguesas compartilham raízes comuns e precisam conhecê-las melhor para entender seus próprios países hoje. 

Qual será o tema do seu próximo livro? Meu próximo livro, ‘1889’ será sobre o Segundo Reinado e a Proclamação da República. Essa é uma idéia que foi ganhando corpo desde o lançamento do meu primeiro livro. O objetivo é fechar uma trilogia com datas que explicam a construção do Brasil durante o século XIX, ou seja, 1808, ano chegada da corte de D. João ao Rio de Janeiro, depois 1822, data da Independência, e por fim 1889, que marca da proclamação da República. O estudo dessas três datas é fundamental para entender o Brasil de hoje. Estou no começo das pesquisas para o ‘1889’ .O plano é lançar em 2013, mas pretendo me manter fiel à fórmula que consagrou as duas obras anteriores, ou seja, pesquisa profundada aliada a uma linguagem jornalística acessível, fácil de entender. 

Pretende escrever sobre outros temas. Está nos seus planos um romance, por exemplo? Tenho vários projetos, mas é cedo para anunciá-los. A única certeza é que pretendo continuar a escrever sobre História do Brasil. Ou seja, não existem planos de aposentadoria. Ao contrário, enquanto tiver energia e saúde, pretendo pesquisar e escrever muito. Há um enorme interesse pelo assunto. Significa uma grande oportunidade para quem estiver disposto a escrever em linguagem clara e acessível para esse novo leitor.

O sonho de todo escritor é viver de seus livros, isso já acontece com você? É errado achar que literatura é uma atividade marginal, que não remunera os autores de forma adequada. Já é possível viver dignamente de livros no Brasil, desde que isso seja feito de forma profissional e talentosa. Hoje, felizmente, consigo viver de meus próprios livros, mas antes tive de acreditar nesse nova carreira e investir nela, usando inclusive reservas financeiras pessoais. Fiz o ‘1808’ por minha própria conta e risco, arcando com todos os custos da pesquisa, sem qualquer adiantamento. Essa situação mudou bastante depois que o livro virou um best-seller. A partir daí quase todos os grandes editores começaram a bater na minha porta e a me oferecer grandes vantagens financeiras para editar o livro seguinte. Mas eu não me engano com isso. Adiantamento às vezes serve apenas para criar uma obrigação contratual desnecessária e uma fonte de angústia para o autor. Prefiro escrever o livro com calma, fazer uma pesquisa de boa qualidade e ter certeza que os leitores vão gostar do meu trabalho. O resto é mera consequência do bom trabalho de reportagem.

Quais são seus escritores favoritos aqui e em Portugal?  No Brasil, gosto dos clássicos da nossa literatura, como Machado de Assis, João Guimarães Rosa, Érico Veríssimo, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira. Em Portugal, admiro muito o trabalho de Miguel Sousa Tavares, autor do best-seller “Equador”, mas também li, é claro, quase toda a obra de José Saramago. Acho que seu melhor livro é ‘História do Cerco de Lisboa’.

Seus livros serão lançados em outros países? Até agora, os dois livros foram publicados no Brasil e em Portugal, mas há negociações em andamento com editoras de outros países. A tradução para o inglês fica pronta até o final deste ano. Acabei de assinar um contrato com um agente literário em Nova York. Acredito que as perspectivas são muito boas lá fora porque teremos uma Copa do Mundo e uma Olimpíada no Brasil, o que deve aumentar muito o interesse pelo país entre os leitores estrangeiros.

Prêmios são importantes para o escritor? Acho que todo livro deve passar por alguns estágios de provação. O primeiro é a satisfação do próprio autor com o resultado de seu trabalho. Às vezes, por alguma razão obscura, o livro não fica tão bom quanto o autor gostaria. Pode ser por falta de tempo, de espaço para o texto ou mesmo de inspiração. No meu caso, confesso que fiquei contente com o que escrevi. Com exceção de alguns poucos erros de revisão e checagem, eu não mudaria nada em meus livros. O segundo degrau de validação vem dos leitores. Se o livro não vende, por melhor que seja, é sempre um problema. Se vende, é porque os leitores gostaram do trabalho do autor, sentem que a obra tem alguma contribuição a dar em suas vidas e recomendam a leitura para outras pessoas. Isso, felizmente, ocorreu tanto com o ‘1822’ quanto com o ‘1822’. Por fim, há a avaliação dos críticos. Ela pode vir em forma de resenhas publicadas ou na forma de prêmios literários. Meus livros tiveram uma acolhida bastante generosa da crítica e isso se expressou nos prêmios que recebi.

A palavra apurada de Valter Hugo Mãe

Valter Hugo Mãe acaba de lançar em Portugal seu quinto romance, ‘O Filho de Mil Homens’, aguardado ainda no Brasil. Porém, agora, chegará às livrarias deste lado do Atlântico como um escritor conhecido e festejado.

Há quatro meses pouco se sabia sobre as suas obras por aqui. O divisor de águas aconteceu na Feira Literária de Paraty (Flip), no litoral sul do Rio de Janeiro, que anualmente reúne grandes nomes da literatura mundial. Foi ali que Hugo Mãe – um dos convidados do evento de 2011 – e o público protagonizaram um encontro memorável, pontuado de emoções.

Enquanto lia um texto sobre a sua relação afetiva com o Brasil, o autor desconcertou a platéia, levando-a às lágrimas. E à medida que foi lendo também se comoveu. Choraram juntos. Saiu dali aplaudido de pé, venerado, provocando o esgotamento de 500 exemplares do livro  ‘A Máquina de Fazer Espanhóis’, colocados à venda na livraria da Feira.

Só falava-se dele em Paraty. Nos dias que se seguiram ganhou espaço na mídia e o carinho do público. Estava selada a sinergia entre escritor e leitor.

Angolano, radicalizado em Portugal, Valter Hugo Mãe passou a infância na cidade de Paços Ferreira, no Distrito do Porto. Em 1980 mudou-se para a Vila do Conde, cidade com cerca de 30 mil habitantes, onde reside até hoje.

Formado em Direito, começou na arte literária escrevendo poesias, lançando seu primeiro romance ‘O Nosso Reino’, em 2004. Três anos depois, venceu o Prêmio Literário José Saramago com seu segundo livro ‘O Remorso de Baltazar Serapião’. “Este livro é um tsunami no sentido total: linguístico, semântico e sintático. Deu-me a sensação de assistir a uma espécie de parto da língua portuguesa”, declarou na ocasião o escritor José Saramago.

Aos 41 anos de idade  é fenômeno de venda em Portugal e já trilha o mesmo caminho no Brasil. ‘A Máquina de Fazer Espanhóis’ ficou semanas seguidas no topo dos livros de ficção mais vendidos, depois de lançado na Flip.

Conhecido pelo estilo de escrita em letras minúsculas surpreendeu utilizando-se das maiúsculas em ‘O Filho de Mil Homens’. Mas ele é assim mesmo, um autor que  gosta de arriscar na forma e conteúdo, que rejeita ser associado a um único conceito.

Subverte, inquieta  e inova com sua imaginação linguística.  Percebe-se seu extremo cuidado com o resultado final do texto ao primar pelo apuro das palavras. Traz à luz da discussão assuntos inerentes ao ser humano,  dentro de uma visão crítica da sociedade, que remete à reflexão. E seus personagens de tão verossímeis parecem reais. Mas “são absolutamente fictícios”, diz Valter Hugo Mãe em entrevista ao blog Scriptor, para em seguida completar: “A realidade é que é demasiada e entra até na ficção”.

Você tem uma intimidade estreita com as palavras, que faz até parecer fácil escrever um livro. Suas histórias são envolventes, com diálogos ricos, que tocam o leitor profundamente. Escrever é um dom, prática ou a junção desses dois elementos? Escrever é sofrido ou prazeroso? Para mim escrever é um gesto de enorme prazer, ainda que possa carregar momentos de profunda comoção pela verosimilhança do enredo e do empenho colocado na criação. Não creio que seja só um dom, tem muito trabalho. Escrever é trabalhar muito. Precisa de uma conquista interior grande, mas precisa também de uma percepção clara do que é dominar um texto de algum modo.

 Quando cria um romance já sabe o final ou vai desenvolvendo a história à medida que escreve? Não. Se souber exatamente o final talvez perca a vontade de escrever. Gosto de saber algumas premissas, mas depois ficar procurando o caminho para um lugar que será sempre uma revelação.

Como surgiu a idéia de escrever ‘A Máquina de Fazer Espanhóis’? Quis pensar acerca da terceira idade. Quis um livro que  pudesse ficcionar o meu convívio com alguém na terceira idade, para compensar de algum modo a morte do meu pai.

É também uma visão fatalista e crítica sobre a condição de Portugal? Não é fatalista. É desencantada para que se reclame um melhor exercício da nossa liberdade, da nossa democracia, do nosso trabalho. Para que se saiba melhor quem somos e, sobretudo, para que se saiba o que queremos enquanto coletivo.

O fator sobrevivência está sempre presente na sua obra. A impressão que tenho quando leio seus livros é de que consegue criar personagens tão interessantes porque presta atenção minuciosamente nas pessoas do seu dia a dia e retira da realidade delas inspiração para escrever. Estou correta? Sim. Interessam-me muito as pessoas como toda a gente é. Tenho pouco fascínio por buscar personagens óbvias. Encontro nas pessoas discretas um mundo infinito de surpresas.

Você traz à tona assuntos pertinentes como a opressão feminina – evidente em ‘O Remorso de Baltazar Serapião’- velhice, política, laços familiares, enfim assuntos do nosso cotidiano e criticas sociais. A literatura de alguma forma ajuda a transformar a sociedade? Sim. Sobretudo interessa-me que não seja uma forma de piorar a sociedade. Gosto de pensar que vale a pena problematizar para pensar em modos de fazer melhor.

Qual o livro que levou mais tempo para escrever? Seguramente um livro de poemas que dediquei à Adriana Calcanhotto. Uma coisa com uns anos a que chamei ‘o resto da minha alegria’. Fiquei uns anos, desde que ouvi o tema ‘Esquadros’, a tomar notas de pequenos – minúsculos – versos de amor. Talvez tenha demorado uns 5 anos a concluir  o livro, que é muito pequeno, como completo.

Como é sua relação com Angola, país onde nasceu. Seus livros são apreciados lá e em outros países da África? Não existe quase relação. Nasci lá mas nunca pude voltar. Fico sonhando um dia visitar e conhecer a terra onde nasci.

Quais são seus autores preferidos, no Brasil gosta de algum em especial? De Herberto Helder a Pessoa, de Kafka a Sharon Olds. De Clarice Lispector a Drummond, de Lêdo Ivo a Guimarães Rosa.

José Saramago fez elogios a você. Como foi esse momento?
Muito feliz. Foi uma atitude de grande generosidade dele. Ficarei para sempre muito grato.

As pessoas e a crítica especializada tendem à comparação. Há quem ache Valter Hugo Mãe sucessor de Saramago. Ele o influenciou? 
Ele foi e é um escritor que muito admiro. E influenciou sobretudo como cidadão, porque pensamos coisas muito semelhantes acerca da humanidade.

Você comoveu os brasileiros na Flip. Como avalia sua participação no evento . Sua presença em Paraty alavancou a sua carreira internacional?  Creio que a avaliação tem de ser do público. Para mim foi um prazer enorme estar em Paraty. Fiquei com muita vontade de poder voltar no futuro. O meu percurso internacional foi recentemente entregue a uma das mais importantes agências literárias internacionais, e Paraty aconteceu bem no tempo de início de trabalho e penso que tudo acabou por se favorecer. Foi uma sorte grande e isso deixou-me impressionado.

Você chegou ao Brasil como um autor desconhecido e saiu aclamado, conseguiu uma forte empatia com o público. Em nove anos de Flip nada parecido havia acontecido. Para a imprensa, isso ocorreu porque você não se privou de demonstrar sentimentos. Como lida com as suas emoções? Lido muito bem. Não tenho de as esconder. Acredito que as pessoas que se privam de mostrar afeto vivem pior. Sou afetivo e sensibilizo-me muito com muitas coisas. As pessoas em Paraty comoveram-me muito com o seu gesto bonito de me aplaudir e de me falarem com muito carinho.

Existe diferença entre os leitores brasileiros e portugueses?
Os brasileiros pedem-me em casamento, os portugueses convidam-me para jantar.

Soube que planeja vir ao Brasil e ficar por aqui algum tempo para escrever um livro. Procede? Seria um livro ambientado no país?
Não existe um plano para isso. Existe uma vontade sempre adiada. Tenho uma memória muito pessoal e emotiva do lugar da Ilha da Conceição, nos arredores de Niterói, onde passei um tempo há anos. Sempre tive vontade de escrever algo sobre esse lugar, inventando personagens que vivessem nesse lugar.

Fale do seu novo livro ‘O Filho de Mil Homens’. Tem um pouco de você nele, já que manifestou recentemente o desejo de ser pai?  Ser pai é uma prioridade? Não é uma prioridade, é um desejo que me surpreende. Não significa que coloque em prática. O livro, inclusive, será um modo de ter esse filho sem ter. Ajuda-me a ponderar tudo. Não sei se um dia terei um filho. Sei o que significa ter, mas não sei se terei. O livro coincide comigo apenas nesse mote, mas depois conta a história de um pescador que é muito diferente de mim e cuja vida não coincide mais com a minha.

Também escreve poesias. No Brasil o mercado de livros de poesias é restrito, não gera interesse das editoras, que alegam pouca vendagem. Em Portugal há leitores interessados?A poesia em Portugal vende pouco, mas tem seu núcleo de admiradores fiéis. Creio que vai justificando as edições e existem casos de grande popularidade e vendas. Eu sempre compro e tenho alguma tendência para colecionar os livros dos meus poetas favoritos.

Têm livros infantis editados. É mais difícil escrever para para criança? Sim. Eu acho mais difícil. Sobretudo tenho dificuldade em entender se o que escrevi é adequado ou não. E nunca sei se é para crianças de 5 anos ou para meninos de 10 ou 12. Escrevo e depois pergunto para que aquilo serve. Peço a amigos professores para me dizerem para quem serve o texto.

É jovem, um escritor da geração digital. Até que ponto as redes sociais ajudam na aproximação com o leitor e a evidenciar ainda mais as suas obras? É um canal de comunicação indispensável para os novos escritores? Ajudarão, mas também criam certa confusão e muita distração. Quando se adquire uma visibilidade grande torna-se muito exigente responder a tantas pessoas. É já quase impossível responder. Tenho sofrido muito com isso, porque não tenho por hábito deixar alguém sem resposta. A possibilidade de um contacto direto pode criar momentos magníficos, mas também traz todo um oportunismo, gente que apenas quer aproveitar uma oportunidade de mostrar seu trabalho e seguir de carona em cima do nome ou do trabalho de outra pessoa.

Como é sua relação com os moradores de Vila do Conde?
Eu não incomodo e eles não me incomodam. Sou um cidadão normalíssimo como qualquer outro. Passo para todo o lado e já não me prestam atenção. Isso é muito bom. Gosto muito de viver aqui.

Sei que transita por outras vertentes artísticas, como nas artes plásticas e como vocalista de um grupo musical. Mas o que gosta de fazer nas horas vagas? Não tenho muitas horas vagas, a menos que esteja propositadamente a querer não trabalhar. Mas creio que o que mais me tira do trabalho é a família e são os amigos. Adoro sair para o café, à noite, e ficar a conversar, com e sem assunto, enquanto bebo uma água e observo as pessoas. Gosto de estar com pessoas amigas que me conhecem desde sempre e que me dizem de verdade o que pensam sobre tudo.

Os múltiplos olhares de Mia Couto

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Mia Couto é um autor intenso, ligado às origens. Transita dentro de um universo lírico e sensível que fascina o leitor, levando-o a pensar na sua própria existência. Seus personagens são pulsantes, envoltos numa narrativa apoiada  em neologismos, rica e consistente, entre o real e o mágico. Histórias habitadas numa África sofrida, porém culturalmente encantadora, nas quais Mia parte em defesa da pluralidade da identidade africana, muito além dos estereótipos atribuídos ao continente.

Natural de Moçambique, é o escritor africano mais traduzido no mundo e um dos principais autores contemporâneos de língua  portuguesa. Prosa e poesia estão  sempre presentes na sua obra, apoiada por uma “reinvenção linguística”, como ele próprio define.

Seu primeiro romance, ‘Terra Sonâmbula’ (1992), foi eleito um dos 12 melhores livros de toda a África no século XX. E assim segue sua trajetória literária, pontuada por prêmios de peso. Reverenciado em Portugal, já ultrapassou a venda de 1 milhão de livros no mundo, entre os quais acima de 100 mil no Brasil, onde até o momento foram lançados mais de 20 títulos do escritor. Mas logo vem outro por aí, que está em fase de conclusão. “Estou terminando um novo romance. De fato eu já entreguei ao editor uma versão rascunho, mas entendi que essa versão não estava ainda acabada”, conta Mia ao blog  Scriptor.

Trata-se de uma história vivida por ele no norte de Moçambique. “Enquanto fazia os meus trabalhos de biólogo a aldeia onde eu estava começou a ser atacada por um casal de leões que, no período de quatro meses, mataram e devoraram 25 pessoas. Foi uma experiência traumática, tão irreal que eu preciso de me distanciar dela convertendo-a numa história”.

Mia Couto surgiu para o público leitor em 1983 com o livro de poesias ‘Raiz de Orvalho’. Filho de portugueses, nasceu Antonio Emílio Leite Couto, em Beira, cidade à margem do Oceano Índico, no dia 5 de julho de 1955. Ganhou o pseudômino de Mia do irmão mais novo, que não sabia pronunciar Emílio corretamente.

Biólogo por formação, trabalho que exerce até hoje, também estudou Medicina durante três anos, desistiu do curso para ingressar no jornalismo. Engajado, participou da luta pela independência de Moçambique do domínio de Portugal, ocorrida em 1975. Hoje mora em Maputo, capital do país. Uma curiosidade: é coautor do hino nacional moçambicano.

Segue a íntegra da entrevista concedida por Mia Couto ao blog Scriptor.

Como define a sua literatura? Não a defino. Duvido mesmo se me interessa definir uma matéria que apenas me fascina porque escapa a definições, porque é furtiva às razões da razão. Sou também um cientista e, mesmo nesse território que uns dizem ser das ciências exatas, o que me encanta é o que está para além da racionalidade e das categorizações.

A procura pela identidade está sempre presente na sua obra. Posso dizer que é um ‘escritor da terra’? A terra surge para mim como uma personagem. Não me interessa a paisagem senão quanto ela é capaz de falar conosco e despertar em nós uma outra identidade. E é exatamente a identidade que constitui o centro do meu trabalho literário. Acreditamos que temos uma identidade que nos define. Mas essa identidade é sempre ilusória, é sempre   plural. Somos quem somos porque somos muitos, somos personagens diversos que despertam à medida que nos relacionamos com os outros. A identidade que temos é apenas a procura dessa mesma identidade.

O que Moçambique representa para seu trabalho de escritor? É a minha casa, o meu chão. Estou condenado a essa referência, a essa minha outra epiderme da alma. Mesmo que eu um dia saísse de Moçambique, Moçambique nunca sairia de mim e estaria sempre a escrever no pequeno quintal da minha infância.

Tem um pouco de você nos seus personagens? Todos são, num certo modo, meus parentes. Mas existe um conto, em particular, em que me revejo que se chama ‘O embondeiro  que sonhava pássaros’  e que está integrado no livro ‘Cada uma Hora é uma Raça’.

É um escritor muito admirado e lido no Brasil. A sua participação na Feira Literária de Paraty (Flip), em 2007, colaborou para o aumento do número de leitores brasileiros? Não creio. Esse conhecimento maior da minha obra deve-se, sobretudo, a um trabalho persistente e eficaz da minha editora, a Companhia da Letras.

A reação dos leitores às suas obras se difere  de acordo com o país que vivem ou vê semelhanças entre eles? Nos países como o Brasil e os países africanos a idéia de uma realidade mágica não se coloca tanto como na Europa. A apreensão do trabalho de recriação da língua está mais presente nos leitores de língua portuguesa. Muita da reinvenção linguística que eu ensaio na minha escrita é intraduzível.

Tem preferência por algum escritor brasileiro, quais influenciaram a sua geração? Fui influenciado, sobretudo, por poetas brasileiros. E incluo Guimarães Rosa nos autores poéticos. Jorge Amado marcou muito a minha geração e a geração anterior em todos os países africanos de língua portuguesa. Mas não creio que isso tivesse ocorrido comigo. Devo mais a Drummond, João Cabral de Mello Neto, Adélia Prado, Hilda Hilst, Manoel de Barros.

Percebo que é um escritor que se aproxima do seu público. Existem escritores que preferem viver como mitos, isolados. Estar mais próximo do leitor ajuda no momento da criação? Não é um assunto de escritor. Sou eu assim, que me construo nessa relação com os outros, que retiro um infinito prazer na descoberta da diversidade de pessoas e de situações em que nos perdemos e encontramos.

Escrever é um dom ou é um processo que vai se aperfeiçoando com o tempo? Mais do que escrever o que importa é ter histórias para contar. E saber converter o vivido em história por viver e assumir o passado como coisa inventada.

Ainda têm assuntos a serem explorados dentro da literatura ou tudo já foi abordado e é contado de forma diferente? Diz-se que tudo já foi dito e que apenas interessa o modo de dizer. Não sei se existe essa separação clara entre a forma e o conteúdo. Na literatura que me interessa que é a da palavra poética tudo é essencial.

Qual dos seus livros foi o mais difícil de escrever? ‘Terra Sonâmbula’, o meu primeiro romance. Foi escrito durante a guerra civil, um conflito que matou quase um milhão de pessoas e em que morreram colegas e amigos meus. Eu acreditava que apenas depois de se alcançar a paz é que eu poderia escrever sobre a guerra. Não sucedeu assim: noites e noites de insônia batalhei contra fantasmas, possivelmente como uma tentativa de sobrevivência da minha própria integridade.

A poesia está sempre na sua vida, o  que representa para você? Mais do que um gênero literário a poesia é para mim um modo de olhar o mundo e de percorrer a vida.

Qual é a sua opinião sobre a reforma ortográfica dos países de língua portuguesa? É algo que me é indiferente. Rebelei-me contra as razões invocadas para a sua necessidade. Eu leio e sempre li os brasileiros sem nenhuma dificuldade e até tomando a diferença ortográfica como algo que marcava uma saudável diversidade. A distância entre nós não deriva senão de outras razões políticas, da falta de interesse em criar proximidades.

É mais difícil escrever romance, conto ou poesia? Não sei medir dificuldade nem comparar a complexidade. A poesia e a prosa acontecem-me não como um empreendimento, mas como um diálogo com os outros meus eus.

Existe distanciamento cultural entre Brasil e África? Existe. Contudo, essa distância foi muito reduzida nos últimos anos. Um desejo mais genuíno se expressou em políticas de conhecimento mais efetivo de África no Brasil. Porque os africanos sempre conheceram, mesmo de forma mistificada, o Brasil e os brasileiros. A ignorância brasileira de África foi algo que me surpreendeu muito quando, há vinte anos, comecei a visitar o Brasil. Mesmo entre os brasileiros que se reclamam afro-brasileiros sobrevive uma imagem demasiada estereotipada do que é a África e de quem são africanos. Hoje, essa distância foi muito reduzida: muitos brasileiros já escutam música e leem literatura africana. Não apenas dos países africanos que falam português mas de todos os outros.

Quando não está escrevendo o que gosta de fazer? Estar com os amigos é o melhor exercício, aquele que nos autoriza regressar à infância.

Pretende voltar ao Brasil? Não se trata de pretender. Eu pretendo sempre. O Brasil é uma enorme paixão, mesmo que eu saiba que esse meu Brasil é um lugar inventado. Eu necessitaria de muitas vidas para me compenetrar que esse lugar, afinal, não existe.

Existe algum livro perfeito? O que nunca será escrito.