A palavra traz consigo a magia da aproximação. Milhares de distância separam Brasil de Portugal, mas a literatura do escritor português Victor Eustáquio tem agradado aos leitores brasileiros. Um feito. Apesar do seu romance de estreia O Carrossel de Lúcifer (2008) não ter sido lançado no Brasil, mesmo assim é lido pelos quatro cantos do país; livro onde se revela um escritor noir de extrema competência.
Interessante ir descobrindo a cada página virada da obra do autor, composta também de contos, um pouco mais do seu mundo interior. Pergunto se seus personagens têm algo dele. “Inevitavelmente. Apesar da linha de ficção e da linha da realidade nunca se tocarem, andam sempre muito próximas. Não acredito em histórias contadas por quem não as viveu. Um romance honesto interpreta a realidade, reinventando-a”, diz ele, que começou a ser envolver com as letras ainda na infância.
Victor é um escritor denso, de fina ironia, sem perder de vista o humor, e que reúne em sua narrativa figuras solitárias, expondo alto grau de sentimentos primitivos e voltagem erótica. O sexo aparece como crítica a uma sociedade que oprime, isola e maltrata seus indivíduos. Talvez por sua formação filosófica consegue extrair dos seus personagens o que eles têm de mais secreto, obscuro. Seu texto por vezes brutal, perturbador às mentes mais delicadas, vai impondo ao leitor pensar na sua existência.
Residente na cidade de Torres Vedras, no distrito de Lisboa, o escritor está em vias de lançar o seu segundo romance. Seria Victor Eustáquio o novo na literatura? Conheça um pouco mais de suas idéias.
Qual o significado da literatura para você?
Como leitor, a possibilidade de conhecer o que os outros têm para dizer. Como escritor, a possibilidade de dizer aquilo que quero e preciso de dizer. É tão simples quanto isto. É claro que não deixa de ser um jogo de afetos, mas a literatura tem essa vantagem: a liberdade de escolha. Entre o que agrada e desagrada, entre o que se aprova e aquilo de que se discorda. Estou a ser simplista deliberadamente. Podemos dizer imensas coisas sobre o significado e os sentidos e as paixões e o alcance ou as razões do pulsar artístico presentes na escrita, mas não passam de lugares comuns, pela simples razão de que são inerentes à própria literatura. Por isso, prefiro a versão simplificada.
Você tem dito que tudo já foi escrito, há saídas para inovar?
Tudo já foi escrito no sentido de que todas as dimensões da existência humana já foram objecto de reflexões de natureza literária. Ou seja, do ponto de vista temático. Agora é evidente que qualquer peça literária nova é sempre uma inovação, porque simplesmente é nova. Desde que não se trate de um plágio descarado, como é evidente. A questão é que, sendo nova, não quer dizer que traga algo de novo, que acrescente algo de particularmente brilhante ao que já foi escrito em contextos diferentes. Aliás, diria mesmo que, na maioria dos casos, apenas replica, e mal, o que foi construído ao longo de séculos. O que porventura faz é relançar as mesmas preocupações em novos contextos. Poderemos aceitar isso como uma inovação? Talvez, se tivermos presentes alguns critérios. Não basta mudar as regras, como escrever sem pontuação, situar as narrativas em registos despudorados ou até mesmo recorrer às novas tecnologias, com aplicações que desenvolvem automaticamente vários caminhos para um determinado enredo. Estou em crer que a questão deve ser colocada de outro modo. Não me parece que seja um problema de forma, mas de conteúdo, aliás da pertinência do conteúdo. A literatura deve aspirar à possibilidade de manifestar a evolução das sociedades, pelo que a interpretação das novas escalas de valores talvez seja a dimensão a perseguir. Não será tanto um problema de querer criar algo de novo, procurar inovar, mas tão somente de reavaliar, de ser capaz dar voz e interpretar os tempos modernos.
Já disse que escrever está na moda. A erudição é necessária ao escritor?
Depende do que se entende ou se quer defender como erudição. Rejeito a presunção da alta cultura que reclama o saber, e a legitimidade de produzir ou reproduzir o conhecimento, como um bem exclusivo de determinadas elites. Contudo, também não me parece que seja intelectualmente coerente que qualquer indivíduo desate a escrever apenas porque está na moda. Quer dizer, pode fazê-lo, mas dificilmente é de se esperar bons resultados. Regra geral, é apenas mais um contributo para uma poluição que se achou por bem democratizar. Basta entrar numa livraria qualquer para perceber isto. Sejamos claros. E não vou dizer nada de novo, embora nunca seja demais repeti-lo: não é possível ser-se um bom escritor sem se ter sido antes um bom leitor. Até pode haver vocação, mas são necessárias ferramentas. Não técnicas, que essas até são competências que podem ser adquiridas num curso qualquer de escrita criativa – coisa que, aliás, até não consigo valorizar – mas ferramentas que nos permitam entender que a literatura é um compromisso com a verdade, uma verdade individual que aspira à universalidade. O pensamento literário não é conjuntural, mas estrutural. Desenvolve-se com muita leitura e paixão pela literatura. O próprio qualificativo de bom, ou a distinção entre o que podemos considerar bom ou mau, releva deste princípio: uma boa peça literária não é aquela que porventura é medida pelo que os críticos dizem ou pela popularidade ou número de cópias vendidas. O bom é indissociável da urgência de registar a verdade individual, de capacidade de interpretar a escala de valores em que nos posicionamos, da honestidade. Não é uma questão de se gostar ou de não se gostar, que essa é outra história com muitas armadilhas epistemológicas; é uma questão de saber estruturar a verdade que preconizamos como válida. Esta é a missão de um literato. Logo, pressupõe erudição, mas desde que colocada nestes termos e que obviamente constitui uma condição para alguém ter a ousadia de se afirmar como escritor.
A qualidade da literatura mundial decaiu?
Objetivamente não sei, porque nunca conseguirei ler o suficiente para poder ter uma amostra que me permita inferir da totalidade do que se escreve. Mesmo que me sinta tentado a delimitar a amplitude da qualidade da literatura. O que sinto é que há muita poluição. Escreve-se muito e acerta-se pouco. Aparentemente isto contraria o que disse há pouco, mas tenho dificuldade em acreditar que a democratização da produção literária, no sentido de que cada vez é mais editável tudo o que se escreve, corresponda a melhor literatura. Provavelmente isto responde à pergunta.
Qual o papel da filosofia dentro do seu ofício como autor?
É um processo inconsciente. A procura de uma ordem racional está presente mas não sei exacamente como se processa ou onde se situa. Às vezes, questiono-me ou questionam-me porque escrevi esta ou aquela frase. O que quero dizer com aquilo? Julgo que sei, mas depois sou incapaz de verbalizá-lo ou torna-lo inteligível. Está lá porque algo me disse que deveria ali estar. Algo me levou a escrever aquilo. Será possível racionalizar o que supostamente decorre de uma motivação catártica? Não quer dizer que eu não seja extremamente crítico e exigente em relação ao escrevo. Aliás, possivelmente peco pelo perfeccionismo ou por aspirar a essa condição. Por isso, é tão doloroso escrever. Pelo menos para mim. Quer dizer, reescrever, corrigir, ordenar. Fazer com que o resultado final faça sentido, que seja coerente, verosimilhante, que satisfaça de forma lógica e com uma densidade que possa considerar adequada a necessidade que precisava de suprir.
O conceituado escritor brasileiro, Autran Dourado, falecido recentemente, disse certa vez que vender livros é um acidente na vida do escritor. Você concorda?
Parcialmente. Entendo a escrita como uma forma de suprir necessidades que podem ser emocionais, espirituais, metafísicas, estéticas, criativas. Mas não sejamos hipócritas. Um escritor escreve para ser lido. De resto, um livro sem leitores não passa de um objecto. E não dá de comer a ninguém. Além de que não acredito que haja algum autor que não queira ver o seu trabalho reconhecido. É importante vender livros, embora não deva ser esse o principal objectivo de quem escreve. Para isso, há as editoras e as suas máquinas de marketing. Agora, é bom também não esquecer que há o livro obra, uma manifestação artística, e o livro produto, um bem fungível comercial, que se gasta com o tempo. Se estou convicto que um escritor escreve para ser lido, logo sou obrigado a defender que tem de ser capaz de gerar atração naquilo que produz. Não é que isso deva condicionar a natureza do que escreve, mas obriga a ter em mente esta regra de ouro, o que quer dizer que é evidente a necessidade de um compromisso e de uma clarividência sem grandes afetos. O fracasso é inimigo do bom. E não é fácil saber gerir a vontade e a qualidade do que se escreve.
Existe algo que você pode pontuar dentro do seu processo de criação?
Inicialmente não. Andei cerca de dois meses de volta da história, mas não estava a agradar-me e acabei por pô-la de lado. Um ano depois, tentei desenvolver uma outra ideia, mas de repente apercebi-me de que estava a trabalhar precisamente na mesma história com uma abordagem diferente. E aí deixei de ter dúvidas: era realmente aquilo que queria contar. O que me obrigou finalmente a fazer pesquisa. Aliás, bastante. Psicopatologia, farmacologia e serial killers não eram propriamente áreas da minha especialidade. Não é que fosse esse o fio condutor ou a dimensão central que me interessava explorar. Mas para explicar as relações entre as personagens e imprimir densidade e ruídos de fundo permanentes, não podia passar ao lado. Além de que a credibilidade ou a verosimilhança dos acontecimentos a narrar ficariam comprometidos. Resultado: à medida que fui mergulhando no tema, apaixonei-me cada vez mais e acabei por encontrar nele muito material que me abriu portas para reforçar a intertextualidade e o registo tenso da narrativa.
Qual a leitura que faz sobre o seu livro O Carrossel de Lúcifer?
É uma questão que reservo para os leitores. Aliás, dos ecos que vou recebendo, esse é um dos aspectos que me tem deixado particularmente satisfeito. As leituras têm sido tão diversas que, às vezes, até me questiono: estão a falar do romance que eu escrevi? Sinceramente não fazia a mínima ideia de que houvesse nele tantas possibilidades de ser lido.
Como foi a escolha do enredo?
Não foi escolhido. Foi nascendo. Basta dizer que a história acaba onde planeei começar. Pode parecer estranho, mas escrevi o livro que precede o que estava a pensar escrever. A busca de credibilidade obrigou-me a recuar no tempo e, quando dei por mim, verifiquei que a história que queria contar era afinal bem maior do que aquela que tinha em mente. Mas trezentas páginas depois, era melhor ficar por ali.
É sofrido escrever ou é um processo prazeroso?
Ambas as coisas. Doloroso, porque não consigo fugir de uma relação constante de amor e ódio com o que escrevo. Prazeroso, porque sinto que nunca chego ao fim. Pode parecer uma forma de masoquismo, mas é o doce veneno de quem escreve para suprir necessidades. Só é possível ser feliz se nunca conquistarmos verdadeiramente a felicidade. É um lugar-comum, mas soa bem.
Tem muitos fãs no Brasil. Por que «O Carrossel de Lúcifer» não foi lançado aqui?
Também me questiono sobre isso. É certo que tem estado à venda através da maior rede de distribuição livreira no Brasil, mas a título de produto importado, com um preço proibitivo que não ajuda nada.
Por que depois de quatro anos optou por lançá-lo em e-book, gratuitamente? Atendeu às suas expectativas?
Fi-lo precisamente para o Brasil, donde recebi inúmeras mensagens de pessoas à procura do livro. Quatro anos após a edição em Portugal, e à falta de espaço nas livrarias brasileiras, por que não no ciberespaço, que está sempre vago? Como qualquer autor, gosto de ser lido. É para isso que escrevo.
Em Portugal como foram as vendas do seu livro? Também foi lançado fora do país?
Moderamente modestas, considerando o número de exemplares da primeira edição, que foi acima do que é habitual para uma primeira obra. Mas Portugal também não é propriamente um grande mercado para romances destes. E com a avalanche de novos títulos que são publicados todos os meses, ou se entra no tops na primeira semana, ou não há espaço nas livrarias. Literalmente. Aliás, tal como sucedeu com os leitores brasileiros, também recebi muitas mensagens de pessoas em Portugal à procura do livro. Só me restou reencaminhá-los para a compra online com os constrangimentos que daí decorrem.
Vejo que você se utiliza da internet para mostrar o seu trabalho. Até que ponto a web ajuda a difundí-lo?
Nunca medi seriamente o impacto que eventualmente possa estar a ter. Diria que tem tido um efeito positivo, que aliás se refletiu nas vendas. Apesar de estar arredado das livrarias, o romance continua a vender. Há novos leitores, sinais de curiosidade. Talvez o livro tenha ganho alguma notoriedade adicional. Não sei ao certo. De qualquer modo, tenho estado mais concentrado em partilhar algum material novo. E essa tem sido uma experiência muito interessante.
Acha que a maioria das pessoas adicionadas à sua página no FB o lê de fato?
A maioria de certeza que não lê, como é evidente. Mas tenho leitores fiéis, bastante críticos e entusiastas. E isso é o quanto me basta no FB. Porque há um feedback direto, uma interação forte, personalizada, o que é bastante enriquecedor para o meu trabalho.
Tem como medir esse retorno? Se considera um fenômeno da internet?
É possível medir, mas como disse nunca o fiz. De resto, os indicadores quantitativos acabam por ser pouco relevantes porque nada dizem quanto aos sentidos com que são produzidos – é como os likes, tendencialmente ditados pela regra do impulso e do imediatismo – ao contrário do que sucede com os indicadores qualitativos, que são bem mais reveladores. Os comentários ou mesmo os silêncios são sinais preciosos. Quanto a ser um fenômeno da Internet, só pode ser uma pequena maldade da Cecília…
Como é a sua relação com os seus leitores brasileiros?
Muito intensa. São os meus maiores críticos. E os que me acolhem com mais entusiasmo e afeto. Mesmo quando discordam ou desaprovam o que escrevo, fazem-no, regra geral, com muita acutilância e sempre de forma afável e muito construtiva. Não se pode pedir melhores leitores.
Pretende vir ao Brasil? Quem sabe até escrever um livro aqui?
Já estive no Brasil várias vezes e com estadas relativamente longas por questões profissionais, sobretudo em São Paulo e no Rio de Janeiro. E decerto que seria uma experiência muito agradável poder escrever um livro no Brasil, especialmente no interior onde vivi momentos inesquecíveis.
Quando vai lançar outro livro?
Demorou, mas já está escrito e entregue na minha editora em Portugal, de quem aguardo um feedback. É coisa recente, sobre a qual ainda pouco posso dizer. Em todo o caso, pelo menos posso adiantar que o Brasil ocupa um espaço considerável neste romance.
E o tema?
Vou deixar em aberto, embora possa dizer igualmente que continua a haver um denominador comum. Aliás, receio bem que este seja bem mais feroz que o primeiro.
Além de «O Carrossel de Lúcifer», tem contos editados?
Alguns, apesar do conto ser um gênero que exploro raramente. Um deles, a título de curiosidade, foi publicado numa revista literária brasileira.
O que está lendo no momento?
De momento, como sempre, muitas coisas ao mesmo tempo. Descoberta relativamente recente que ocupou grande parte das minhas leituras deste ano: a obra de Roberto Bolaño. Completamente rendido e apaixonado. Pelo meio, vários romances que foram sendo publicados ao longo do ano, embora lidos com muito desapontamento, Incluindo um Vargas Llosa ou um V. S. Naipaul, que cito apenas por serem ambos Nobel e desastrosos. De resto, muitos scholars e outro material acadêmico por causa da minha tese de doutoramento.
Quando despertou para escrita?
Sim, comecei a rabiscar as minhas primeiras histórias creio que de forma mais ou menos consciente por volta dos dez, onze anos. Dez anos depois, tinha uma pilha de textos, de contos e dois romances. Sempre prosa, ficção. Ideal para manter a saúde mental. Não é que valham alguma coisa como peças literárias. Mas soube bem fazê-lo. E foi importante para exercitar a pena.