Os múltiplos olhares de Mia Couto

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Mia Couto é um autor intenso, ligado às origens. Transita dentro de um universo lírico e sensível que fascina o leitor, levando-o a pensar na sua própria existência. Seus personagens são pulsantes, envoltos numa narrativa apoiada  em neologismos, rica e consistente, entre o real e o mágico. Histórias habitadas numa África sofrida, porém culturalmente encantadora, nas quais Mia parte em defesa da pluralidade da identidade africana, muito além dos estereótipos atribuídos ao continente.

Natural de Moçambique, é o escritor africano mais traduzido no mundo e um dos principais autores contemporâneos de língua  portuguesa. Prosa e poesia estão  sempre presentes na sua obra, apoiada por uma “reinvenção linguística”, como ele próprio define.

Seu primeiro romance, ‘Terra Sonâmbula’ (1992), foi eleito um dos 12 melhores livros de toda a África no século XX. E assim segue sua trajetória literária, pontuada por prêmios de peso. Reverenciado em Portugal, já ultrapassou a venda de 1 milhão de livros no mundo, entre os quais acima de 100 mil no Brasil, onde até o momento foram lançados mais de 20 títulos do escritor. Mas logo vem outro por aí, que está em fase de conclusão. “Estou terminando um novo romance. De fato eu já entreguei ao editor uma versão rascunho, mas entendi que essa versão não estava ainda acabada”, conta Mia ao blog  Scriptor.

Trata-se de uma história vivida por ele no norte de Moçambique. “Enquanto fazia os meus trabalhos de biólogo a aldeia onde eu estava começou a ser atacada por um casal de leões que, no período de quatro meses, mataram e devoraram 25 pessoas. Foi uma experiência traumática, tão irreal que eu preciso de me distanciar dela convertendo-a numa história”.

Mia Couto surgiu para o público leitor em 1983 com o livro de poesias ‘Raiz de Orvalho’. Filho de portugueses, nasceu Antonio Emílio Leite Couto, em Beira, cidade à margem do Oceano Índico, no dia 5 de julho de 1955. Ganhou o pseudômino de Mia do irmão mais novo, que não sabia pronunciar Emílio corretamente.

Biólogo por formação, trabalho que exerce até hoje, também estudou Medicina durante três anos, desistiu do curso para ingressar no jornalismo. Engajado, participou da luta pela independência de Moçambique do domínio de Portugal, ocorrida em 1975. Hoje mora em Maputo, capital do país. Uma curiosidade: é coautor do hino nacional moçambicano.

Segue a íntegra da entrevista concedida por Mia Couto ao blog Scriptor.

Como define a sua literatura? Não a defino. Duvido mesmo se me interessa definir uma matéria que apenas me fascina porque escapa a definições, porque é furtiva às razões da razão. Sou também um cientista e, mesmo nesse território que uns dizem ser das ciências exatas, o que me encanta é o que está para além da racionalidade e das categorizações.

A procura pela identidade está sempre presente na sua obra. Posso dizer que é um ‘escritor da terra’? A terra surge para mim como uma personagem. Não me interessa a paisagem senão quanto ela é capaz de falar conosco e despertar em nós uma outra identidade. E é exatamente a identidade que constitui o centro do meu trabalho literário. Acreditamos que temos uma identidade que nos define. Mas essa identidade é sempre ilusória, é sempre   plural. Somos quem somos porque somos muitos, somos personagens diversos que despertam à medida que nos relacionamos com os outros. A identidade que temos é apenas a procura dessa mesma identidade.

O que Moçambique representa para seu trabalho de escritor? É a minha casa, o meu chão. Estou condenado a essa referência, a essa minha outra epiderme da alma. Mesmo que eu um dia saísse de Moçambique, Moçambique nunca sairia de mim e estaria sempre a escrever no pequeno quintal da minha infância.

Tem um pouco de você nos seus personagens? Todos são, num certo modo, meus parentes. Mas existe um conto, em particular, em que me revejo que se chama ‘O embondeiro  que sonhava pássaros’  e que está integrado no livro ‘Cada uma Hora é uma Raça’.

É um escritor muito admirado e lido no Brasil. A sua participação na Feira Literária de Paraty (Flip), em 2007, colaborou para o aumento do número de leitores brasileiros? Não creio. Esse conhecimento maior da minha obra deve-se, sobretudo, a um trabalho persistente e eficaz da minha editora, a Companhia da Letras.

A reação dos leitores às suas obras se difere  de acordo com o país que vivem ou vê semelhanças entre eles? Nos países como o Brasil e os países africanos a idéia de uma realidade mágica não se coloca tanto como na Europa. A apreensão do trabalho de recriação da língua está mais presente nos leitores de língua portuguesa. Muita da reinvenção linguística que eu ensaio na minha escrita é intraduzível.

Tem preferência por algum escritor brasileiro, quais influenciaram a sua geração? Fui influenciado, sobretudo, por poetas brasileiros. E incluo Guimarães Rosa nos autores poéticos. Jorge Amado marcou muito a minha geração e a geração anterior em todos os países africanos de língua portuguesa. Mas não creio que isso tivesse ocorrido comigo. Devo mais a Drummond, João Cabral de Mello Neto, Adélia Prado, Hilda Hilst, Manoel de Barros.

Percebo que é um escritor que se aproxima do seu público. Existem escritores que preferem viver como mitos, isolados. Estar mais próximo do leitor ajuda no momento da criação? Não é um assunto de escritor. Sou eu assim, que me construo nessa relação com os outros, que retiro um infinito prazer na descoberta da diversidade de pessoas e de situações em que nos perdemos e encontramos.

Escrever é um dom ou é um processo que vai se aperfeiçoando com o tempo? Mais do que escrever o que importa é ter histórias para contar. E saber converter o vivido em história por viver e assumir o passado como coisa inventada.

Ainda têm assuntos a serem explorados dentro da literatura ou tudo já foi abordado e é contado de forma diferente? Diz-se que tudo já foi dito e que apenas interessa o modo de dizer. Não sei se existe essa separação clara entre a forma e o conteúdo. Na literatura que me interessa que é a da palavra poética tudo é essencial.

Qual dos seus livros foi o mais difícil de escrever? ‘Terra Sonâmbula’, o meu primeiro romance. Foi escrito durante a guerra civil, um conflito que matou quase um milhão de pessoas e em que morreram colegas e amigos meus. Eu acreditava que apenas depois de se alcançar a paz é que eu poderia escrever sobre a guerra. Não sucedeu assim: noites e noites de insônia batalhei contra fantasmas, possivelmente como uma tentativa de sobrevivência da minha própria integridade.

A poesia está sempre na sua vida, o  que representa para você? Mais do que um gênero literário a poesia é para mim um modo de olhar o mundo e de percorrer a vida.

Qual é a sua opinião sobre a reforma ortográfica dos países de língua portuguesa? É algo que me é indiferente. Rebelei-me contra as razões invocadas para a sua necessidade. Eu leio e sempre li os brasileiros sem nenhuma dificuldade e até tomando a diferença ortográfica como algo que marcava uma saudável diversidade. A distância entre nós não deriva senão de outras razões políticas, da falta de interesse em criar proximidades.

É mais difícil escrever romance, conto ou poesia? Não sei medir dificuldade nem comparar a complexidade. A poesia e a prosa acontecem-me não como um empreendimento, mas como um diálogo com os outros meus eus.

Existe distanciamento cultural entre Brasil e África? Existe. Contudo, essa distância foi muito reduzida nos últimos anos. Um desejo mais genuíno se expressou em políticas de conhecimento mais efetivo de África no Brasil. Porque os africanos sempre conheceram, mesmo de forma mistificada, o Brasil e os brasileiros. A ignorância brasileira de África foi algo que me surpreendeu muito quando, há vinte anos, comecei a visitar o Brasil. Mesmo entre os brasileiros que se reclamam afro-brasileiros sobrevive uma imagem demasiada estereotipada do que é a África e de quem são africanos. Hoje, essa distância foi muito reduzida: muitos brasileiros já escutam música e leem literatura africana. Não apenas dos países africanos que falam português mas de todos os outros.

Quando não está escrevendo o que gosta de fazer? Estar com os amigos é o melhor exercício, aquele que nos autoriza regressar à infância.

Pretende voltar ao Brasil? Não se trata de pretender. Eu pretendo sempre. O Brasil é uma enorme paixão, mesmo que eu saiba que esse meu Brasil é um lugar inventado. Eu necessitaria de muitas vidas para me compenetrar que esse lugar, afinal, não existe.

Existe algum livro perfeito? O que nunca será escrito.

Sobre Cecília Sabino

Jornalista formada pela Universidade Católica de Santos (UniSantos).

Uma resposta »

  1. Obrigado amiga, por mais este espaço dedicado à literatrura e à cultura, ao qual desejo os maiores e melhores sucessos..
    E obrigado também por esta entrevista ao extraordinário escritor que é Mia Couto.

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  2. Cecília!
    Conhecendo o percurso que você fez para ter entrevista, devo reconhcer que obtiveste um resultado excelente.
    Como sempre, Mia Couto, este que felizmente o temos entre nós, nunca responde sem deixar uma pergunta no ar. Cada resposta deste homem, leva-nos a mais uma pergunta e por, digo-te, se estivesses bem enfrente dele, você não acabaria nunca de perguntar. É um escritor em que você nunca se arepende de conversar.
    Parabéns pelo diálogo. Há algo de novo, isso é que importa. E imagino ter sido difícil entrevistar um escritor que está sempre no centro das atenções por parte da imprensa. Mas aqui há novidade.

    Cumprimentos desde Maputo
    EDUARDO QUIVE, sempre ao seu dispôr, quem sabe através deste espaço não se passa a conhecer outros escritores moçambicanos que estão na ribalta como UNGULANI BA KA KHOSA que é o exímio da boa literatura Africana com o seu livro nomeado como um dos 100 melhores do século XX em África? O PAULO BORGES COELHO, também escritor de reconhecido mérito, destacando-se ao vencer o prémio LEYA (Portugal) em 2008? Em fim…

    Uma vez mais,
    Um forte abraço da Pérola do índico

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  3. Parabéns Cecília pela empreitada! Excelente entrevista!
    Desejo muito sucesso para você e este blog maravilhoso!
    Beijão!

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  4. Cecília,

    Parbéns pela excelente entrevista com um escritor tão espetacular. Um blog dedicado á literatura era tudo que estávamos precisando. Sucesso nessa nova trajetória, que certamente lhe abrirá muitas portas!

    Izabel

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